SOCIUS Working Papers
Comunicação apresentada na Conferência:
“O Assédio Moral no Local de Trabalho: emergência de uma nova realidade”
por António Garcia Pereira
O Assédio Moral
Causas e Condicionantes
1. O recente interesse pelo fenómeno do assédio
"O fenómeno do assédio moral, conhecido e estudado na Europa há mais de duas
décadas, só muito recentemente ganhou entre nós foros de alguma importância.
Na verdade, começam agora a surgir reportagens e artigos jornalísticos, inclusive na
imprensa da área económica, dissertações de mestrado e até de doutoramento, eventos
de natureza científica (como a “I Conferência Portuguesa sobre Assédio Moral no
Local de Trabalho” realizada no final de Novembro de 2007 no ISEG) e até uma ou
outra sentença judicial tendo por temática essencial a análise quer do fenómeno em
geral quer de situações concretas do mesmo.
Não há, porém, ainda em Portugal uma única associação de vítimas de assédio moral
que, à semelhança do que se passa, de forma generalizada, por exemplo em Espanha,
possa estudar mais aprofundadamente esta questão da perspectiva das diferentes áreas
de conhecimento (a Medicina, o Direito, a Acção Social, a Psicologia, a Sociologia e
até a Economia e a Gestão), propiciar ajuda adequada nas várias frentes às vítimas e
divulgar os dados e os elementos mais importantes (estatísticas, investigação
científica mais avançada, sentenças exemplares, etc.).
E uma reacção adequada, suficientemente reparadora e dissuasora, por parte da
Ordem Jurídica está muito, muito longe de ser uma realidade.
2. As causas do nosso atraso – o “caldo de cultura” organicista e autoritário
A razão de ser desse nosso atraso decorre de causas sobre as quais, aliás, importa
reflectir um pouco, até para que aquele possa mais rapidamente ser ultrapassado.
Tais causas radicam, antes de mais, num caldo cultural, político e social (próprio de
regimes autoritários como o chamado “Estado Novo”) assente na lógica organicista do
pouco respeito pelo cidadão (sempre considerado “filho de um Deus menor” perante a
sacrossanta, intocável e indiscutível entidade mítica do “Estado” ou da “Nação”) e
pelos seus direitos fundamentais e, logo, potenciadora, do maior desrespeito
“institucional” pelos valores da cidadania e pela protecção da dignidade da pessoa
humana e pela salvaguarda da sua integridade moral.
E também por concepções do
tipo “ordens são ordens e não se discutem !”, “manda quem pode, obedece quem deve
!” ou “é Deus que nos ensina que devemos obedecer aos nossos superiores …” que,
em nome da imposição da obediência cega e servil ao chefe, (ao “duce” ou ao
“führer” seja na família, na igreja, na escola, na empresa ou na Sociedade em geral,
ajudam a “legitimar” socialmente práticas absolutamente contrárias aos mais
elementares princípios da cidadania.
Este “caldo de cultura” – produzido e imposto a gerações e gerações durante 500 anos
de Inquisição e 50 de Fascismo – obviamente não desaparece de um momento para o
outro, nem pela simples consagração formal, na Constituição da República de 1976 de
uma concepção antropocêntrica do mundo e da dignidade da pessoa humana como
valor estruturante do próprio Estado de Direito.
E, mais do que isso, essa cultura do
servilismo, do pouco respeito pelo outro, de “os fins justificam os meios”, e de uma
espécie de “darwismo social” em que só os fortes podem triunfar e os mais fracos,
velhos ou débeis devem ser afastados, foi e é entretanto retomada em força pelas
concepções neo-liberais justificadoras dos invocadamente inelutáveis efeitos da
“globalização” e que, com a “missa hipnótica” da permanente proclamação da
“competitividade” e da “mudança” a todo o custo, procuram assim justificar a “espiral
a caminho do fundo” e a promoção, como melhor destino dos grandes investimentos
internacionais, dos “paraísos da desregulação” não apenas fiscal e administrativa, mas
também laboral e social, cotando-os nos primeiros lugares das chamadas “agências de
rating”.
É igualmente por isso que o estudo do fenómeno do assédio moral e o combate pela
sua adequada punição e erradicação é, afinal e antes de tudo, um combate de
cidadania e pela cidadania!
E que não pode ser consequentemente travado a não ser integrado no combate mais
geral pelos direitos cívicos dos cidadãos e pela preservação da cidadania em todas as
suas vertentes.
Daí, também, que um dos principais passos nesta matéria seja a aposta na melhor
formação e qualificação, de todos (trabalhadores, empregadores e gestores,
representantes sindicais e patronais, técnicos de Higiene e Segurança no Trabalho,
Médicos do Trabalho, Inspectores do Trabalho, magistrados do Ministério Público,
Advogados, Juízes) quantos têm um papel a desempenhar em áreas que se possam
prender com as questões do assédio moral.
E sobre esta matéria há, como todos
sabemos, ainda um longuíssimo caminho a percorrer…
3. Outras razões de um fraco combate ao assédio moral
Por fim, impõe-se de igual modo salientar toda uma série de outros aspectos deste
fenómeno, que não podem nem devem nunca ser olvidados.
Antes de mais, o número de casos que chegam a ser formalmente levados perante a
Justiça, e são por esta conhecidos e decididos, constitui ainda hoje uma ínfima
minoria da realidade.
Tal se deve, fundamentalmente, à consciência colectiva – infelizmente com bastantes
motivos para tal – da gritante incapacidade da Ordem Jurídica para resolver
adequadamente este tipo de situações: desde o elevado e exagerado montante das
custas judiciais, aliado a um regime de acesso ao Direito que praticamente não isenta
ninguém do pagamento daquelas, até às notórias desigualdades na produção da prova
(que hoje, em muitos casos, é quase só ou o depoimento da vítima ou o de
testemunhas em situação idêntica à do Autor da acção e que, consequente e
compreensivelmente, temem represálias mais ou menos idênticas) e à lentidão na
produção de uma decisão (lentidão essa drasticamente agravada por medidas políticolegislativas
como a da recente extinção da 3ª Secção de todos os 5 Juízos do Tribunal
do Trabalho) e, enfim, à natureza ridiculamente miserabilista das indemnizações por
danos morais usualmente fixadas pelos nossos julgadores (ainda muito amarrados ao
caldo ideológico a que acima nos referimos e tão frequentemente predispostos a
denegar o direito à reparação ou à compensação sob o argumento, quantas vezes
fundado em pura ignorância, de que se trataria de “meros incómodos que não
merecem a tutela do Direito” !?).
Para além de concepções como as de um famigerado
Acórdão dom Tribunal da Relação de Lisboa que, em Fevereiro do ano passado,
proclamou que o trabalhador contratado a termo que vê o seu contrato cessado de
forma ilegal não teria direito a indemnização por danos morais!?
Mas a estas se aliam ainda outras circunstâncias, sobre as quais há forçosamente que
intervir se quiser conhecer bem e travar um combate eficiente ao assédio moral.
Por um lado – e para além das óbvias dificuldades, nalguns casos verdadeiramente
intransponíveis, na produção da prova, designadamente pela prática inexistência de
elementos documentais e pela interpretação e aplicação habituais das regras do ónus
daquela, que atiram para cima da vítima com o peso de, sob pena de perda da acção,
ter de fazer uma prova muitas vezes praticamente impossível – é preciso compreender
que, num país tão pequeno como Portugal, com um mercado de trabalho global tão
circunscrito como o nosso, e com mercados sectoriais tão diminutos e
simultaneamente tão dominados seja apenas por três ou quatro grandes empregadores
(como a Comunicação Social ou as Telecomunicações) seja por um autêntico cartel
das principais empresas do sector (como a Banca ou a Indústria Farmacêutica), e com
a rápida e eficaz circulação de uma dada informação ou “cultura de empresa” (ao
estilo do “vejam lá, se até saiu da empresa “X” ao fim de apenas um ano de trabalho
ou meteu a empresa “Y” em Tribunal, quem me garante que não irá fazer aqui o
mesmo ?”), numa inevitável avaliação custo/benefício, normalmente a vítima de
assédio prefere não lançar mão de qualquer procedimento judicial ou administrativo,
precisamente pelo receio de que a eventual vantagem que daí decorra seja afinal muito
inferior aos custos que ela sabe seguramente que terá de suportar, desde logo o de não
mais conseguir emprego, pelo menos naquele mesmo sector de actividade.
4. A precariedade laboral e o modelo taylorista das relações laborais
Depois, num país em que – e de forma crescente, pois só entre 2005 e 2007 e de
acordo com os próprios dados do INE, os contratos a prazo cresceram em 95,8
milhares enquanto os contratos sem termo diminuíram 27,2 milhares – temos cerca de
2 milhões de contratados a prazo (grande parte dos quais, aliás, para responder a
necessidades e para preencher postos de trabalho em absoluto permanentes), a que se
somam um número de novo crescente de falsos “recibos verdes” (ou seja, de falsos
“trabalhadores autónomos”, que encobrem relações tipicamente de trabalho
subordinado) que se estima se esteja de novo a aproximar do meio milhão, fácil é de
compreender que o impedimento constitucional dos despedimentos sem justa causa
não tem aqui afinal qualquer aplicação e que é muito fácil pôr-se termo ao contrato de
qualquer desses 2 milhões e quinhentos mil trabalhadores e privá-lo do seu único
meio de subsistência, dando assim – ao estilo de uma conhecida e musculada
“filosofia de gestão” – um “sinal à organização” do que acontecerá a quem ousar
denunciar e comprovar a arbitrariedade.
Por fim, tenha-se igualmente presente – questão esta bem mais vasta mas de igual e
incontornável relevância para o futuro do país – que o modelo de relações industriais
ainda largamente dominante entre nós, e que aliás o Código do Trabalho (quer na já
vigente “Versão Bagão Félix”, quer na ora em preparação “Versão Vieira da Silva”)
protege, incrementa e institucionaliza, é ainda e lastimavelmente o velho modelo
taylorista da utilização intensiva de mão-de-obra relativamente pouco qualificada e
com baixos salários, dum processo produtivo de fraca incorporação tecnológica e de
trabalhadores pouco diferenciados, agora – com a adição própria das teses neo-liberais
da fase da chamada “globalização” – também necessariamente precários e
amedrontados, numa lógica de competitividade assente na precariedade de quem
trabalha (na perspectiva de que “só há empresas estáveis com trabalhadores
instáveis”) e no seu permanente receio (pois uma mão-de-obra diariamente
amedrontada com o risco de perder a sua fonte de subsistência é necessariamente uma
mão-de-obra barata e dócil, ou seja, pouco reivindicativa e fácil de gerir, por
praticamente tudo tender a aceitar), e não raras vezes na ilegalidade (com pagamentos
de remuneração “por fora” e/ou contra facturas, recibos verdes fraudulentos, fugas aos
descontos para a Segurança Social, negociações de termo de contratos com o recurso
à invocação de baixas ou mútuos acordos fraudulentos que ponham o Estado, em vez
do empregador, a pagar remunerações, etc., etc., etc.).
5. Um desafio difícil, mas não impossível!
O conjugar de todos estes factores – e a prolongada ausência da sua discussão séria e
aprofundada, decorrente de uma lógica ou de aceitação servil do que está ou de
desvalorização dos valores e bens jurídicos e económicos aqui em causa, ou, enfim,
da sua incorporação em estratégias de gestão profundamente erróneas e que
sacrificam a ganhos imediatistas, de forma grave e até irreparável, a execução, sólida
e sustentada, de um programa de desenvolvimento estratégico do país (assente na
definição dos sectores de mais valor acrescentado, no forte investimento tecnológico,
na elevada qualificação dos trabalhadores, na capacidade de inovação, na excelência
de gestão, no redesenho dos nossos sectores produtivos e na reformulação, de alto a
baixo, do nosso sistema de ensino) é evidente que torna particularmente difícil o
combate ao fenómeno do assédio moral.
Em particular num Estado que tem 2,5 vezes
menos do que a média da União Europeia em número de licenciados e portadores de
habilitações iguais ou superiores à licenciatura, que tem o maior índice GINI, ou seja,
de desigualdades sociais (8,3 contra 4,9 da UE), em que o aparente aumento do
emprego destes últimos três anos está a decorrer da substituição do trabalho estável, a
tempo inteiro e qualificado, por trabalho precário, a tempo parcial e pouco
qualificado, agravando ainda mais as nossas dificuldades endémicas neste campo; e
em que, de novo de acordo com o INE, os postos de trabalho dos trabalhadores com
níveis de escolaridade e qualificações mais elevadas entre o 3º trimestre de 2005 e o
3º trimestre de 2007 diminuíram 123 milhares, ao mesmo tempo que, neste último
ano, o abandono escolar era em Portugal de 39,2% (enquanto na UE-27 era de
15,3%).
É um desafio difícil, porém não é de todo impossível.
Mas, mais do que isso (atentos
os valores que aí estão claramente em causa, mas também as necessidades de
progresso do País e do futuro da nossa juventude), é imperioso!
Até porque a
continuarmos por este caminho, a economia portuguesa não conseguirá competir nem
com as economias mais fortes (de forte incorporação tecnológica e elevada
produtividade), a começar pela espanhola, nem com os países de grandes stocks de
mão-de-obra de reserva, relativamente pouco qualificada mas muito mais barata do
que a nossa (como a China), nem com as dos países de Leste recentemente chegados à
UE, e que têm, em média, o dobro das nossas qualificações e metade dos nossos
custos salariais!
E tanto mais que todos os estudos apontam entre nós para um número
verdadeiramente astronómico (mais de 200.000) de vítimas de assédio moral no local
de trabalho, dos quais uma parte bem significativa são trabalhadores qualificados e
mesmo altamente qualificados.
No próximo capítulo trataremos então de procurar não apenas definir o fenómeno do
assédio e estudar as respectivas modalidades e consequências, como também analisar
as várias formas de, por um lado, o detectar e, por outro, de o combater e fazer
sancionar como prática económica e de gestão profundamente errada e como
realidade jurídico-constitucionalmente de todo inaceitável."
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