Parecer sobre o processo de José Rodrigues dos Santos
Um acto lesivo dos princípios éticos e deontológicos da profissão.
1. O jornalista José Rodrigues dos Santos pediu parecer ao Conselho Deontológico do
Sindicato dos Jornalistas após reacção do Conselho de Administração da RTP às declarações
por ele prestadas em entrevista publicada na edição de 7 de Outubro de 2007 da «Pública».
Solicitou em 8 de Outubro de 2007 e foi recebido pelo Conselho Deontológico na sua reunião
de 9 de Outubro de 2007, onde expôs pessoalmente a situação, para que este órgão se
pronunciasse sobre as seguintes questões:
«1. Um jornalista, para mais sendo director de Informação, tem ou não o dever ético de
denunciar imediatamente interferências consumadas na área editorial por entidades que não
sejam jornalísticas, designadamente administrações nomeadas pelo Governo?
«2. A escolha de jornalistas para funções editoriais pertence ao director de Informação ou ao
Conselho de Administração?»
Complementarmente, solicitou que o Conselho Deontológico se pronunciasse «sobre a
instituição de procedimentos disciplinares a jornalistas que denunciam interferências na área
editorial.»
Explicitou:
«Tais procedimentos constituem ou não um acto intimidatório direccionado, não apenas ao
jornalista que denuncia, mas aos jornalistas em geral? Não poderão tais procedimentos serem
interpretados como uma intimidação implícita a todos os jornalistas para que não denunciem
interferências externas ao seu trabalho?»
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas foi solicitado a emitir parecer sobre a
polémica relativa às declarações actuais e aos acontecimentos que determinaram a demissão
de José Rodrigues dos Santos de director de Informação da RTP em 2004. O pedido de
parecer antecedeu o anúncio da intenção da administração da RTP de «iniciar os
procedimentos legais» contra o jornalista. Intenção consumada agora, em Novembro, com a
apresentação de nota de culpa com vista a despedimento.
José Rodrigues dos Santos, como explicitou ao Conselho Deontológico, considerou como
interferência consumada a decisão da administração da RTP de nomear para correspondente
em Madrid a jornalista classificada em quarto lugar, num concurso para o preenchimento do
cargo. Isto é, a administração substituiu-se ao director de Informação.
2. A interferência da administração levou-o a demitir-se do cargo que exercia, no que foi
acompanhado pelos restantes elementos. A Alta Autoridade para a Comunicação Social
analisou a demissão, cuja deliberação foi aprovada em reunião plenária de 30 de Novembro
de 2004.
Nessa deliberação, a Alta Autoridade explicitou as funções que a cada parte incumbiam. A
administração «administra, gere», as direcções de Informação e programação «formatam,
dirigem e executam a disponibilização dos conteúdos». Da audição promovida pela Alta
Autoridade foi concluído que nunca, até ao caso da nomeação de Madrid, fora nomeado
qualquer profissional «contra a opinião (e desde logo contra a proposta)» da direcção de
Informação. A desautorização pela administração suscitou a demissão do director de
Informação.
A administração da RTP, na mesma audição, argumentou que na nomeação de
correspondentes no exterior estão envolvidas «vertentes de representação institucional que
ultrapassam as funções meramente jornalísticas», o que justificaria a tomada de decisão do
conselho de administração. Esses correspondentes «têm de assumir funções de índole muito
variada, onde avultam a cooperação, a representação, a formação, etc, sendo aí por isso
mesmo muito importantes alguns requisitos extra-jornalísticos dos candidatos em avaliação»,
segundo argumentou a administração da RTP perante a Alta Autoridade.
A Alta Autoridade para a Comunicação Social considerou que o processo envolvente dos
factos revelou «uma criticável falta de clareza na separação de responsabilidades entre a
Administração e a Direcção de Informação do operador público, com prejuízo para a
independência e liberdade editorial».
Considerou que à direcção de Informação incumbe a «escolha concreta de jornalistas para o
cargo de correspondente da RTP no estrangeiro», função que deve exercer «sem
condicionalismos nem entraves». Recomendou à administração que, «de futuro, aceite que a
escolha de correspondentes do operador no estrangeiro e de outros responsáveis
descentralizados integrados na função de informar e dependentes da Direcção de Informação
esteja sujeita à livre indicação do Director de Informação, a qual seria com vantagem
precedida de concursos regidos por um regulamento aprovado pela Direcção de Informação e
pela Administração, e sem prejuízo de que se admita que a designação de delegados sem
funções jornalísticas e desempenhando funções não dependendo da Direcção de Informação
caiba à Administração da empresa».
José Rodrigues dos Santos entendeu e entende que a deliberação da Alta Autoridade para a
Comunicação Social confirmou a justeza da sua interpretação e a consumação da interferência
da administração. Apesar disso, releva o facto da administração não ter daí tirado as
consequentes ilações nem ninguém por ela ter extraído as consequências inevitáveis perante a
desautorização do director de Informação.
3. A administração da RTP tem entendimento diferente e declarou-o à comunicação social em
Outubro passado. O «tal facto não envolveu por parte da Administração qualquer interferência
editorial, mas sim e apenas uma legítima decisão de gestão.»
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas solicitou ao Conselho de
Administração da RTP que se pronunciasse sobre a matéria. A administração respondeu,
tendo previamente expendido algumas considerações sobre as declarações de José Rodrigues
do Santos publicadas na revista «Pública».
Como a administração acentuou que a utilização dos elementos fornecidos deve ser usada
com reserva e privacidade, o Conselho Deontológico fixará apenas os argumentos que
enformaram a decisão dos administradores.
A administração entende que lhe cabe a gestão dos recursos humanos, independentemente das
funções que exerçam. Daí que tenha rejeitado a aplicação de um dos critérios da grelha que
serviu para avaliar os candidatos a concurso. Foi esse direito/dever de gerir os recursos que a
levou a rejeitar a ordenação de candidatos. Entende que não houve qualquer prejuízo da
independência e liberdade editorial da direcção de Informação. A esta direcção cabia-lhe
analisar os candidatos mediante critérios de editoria jornalística e classificá-los entre aptos e
não aptos.
A administração discorda que a escolha de jornalistas para o cargo de correspondente da RTP
no estrangeiro seja exercida por inteiro pela direcção de Informação. E di-lo por que, no caso
da correspondente de Madrid, «só não houve uma coincidência de posições com o ex-director,
por este não ter aceite os argumentos da Administração, para rejeitar a ordenação dos
candidatos, feita pelo júri».
A administração da RTP afirma que acolheu a recomendação da Alta Autoridade quanto à
nomeação futura de correspondentes. Em conjunto com a nova direcção de Informação
elaborou um regulamento, ao abrigo do qual foram nomeados diversos correspondentes e
renovada a nomeação da correspondente de Madrid, numa convergência de posições entre a
actual direcção de Informação e a administração.
Em abono dos seus argumentos, a administração considera que a deliberação da Alta
Autoridade para a Comunicação Social só teve aquele desfecho por ter acolhido as
declarações de «um quadro da RTP que pertencia à Direcção demissionária» como forma de
resolver a contradição que assumiu existir entre as declarações da administração e do então
director de Informação.
4. Analisado o Regulamento de nomeação de coordenadores de centros regionais e de
coordenadores e correspondentes no estrangeiro, que foi facultado pela administração da RTP,
constata-se que ele acolhe as posições expendidas pelos administradores.
O Conselho de Administração aprova o estatuto remuneratório (sob proposta da Direcção de
Recursos Humanos) e o perfil da função, respectivos requisitos e factores de exclusão (sob
proposta da Direcção de Informação) antes de iniciado o prazo para a apresentação de
quaisquer candidaturas.
O Conselho de Administração designa uma Comissão de Avaliação sob proposta conjunta das
duas direcções. A esta comissão compete identificar os candidatos aptos e não aptos, podendo
recomendar à Direcção de Informação um candidato, justificando detalhadamente as razões
da referida escolha.
O Conselho de Administração procederá à nomeação, «tendo em consideração a proposta da
Direcção de Informação, justificada a partir do relatório da Comissão de Avaliação e do
parecer da Direcção de Recursos Humanos». Não havendo «circunstâncias no plano de gestão
de recursos que desaconselhem a nomeação», a administração deverá aprovar a proposta.
5. O Conselho Deontológico solicitou também que o Conselho de Redacção da RTP se
pronunciasse. Os membros eleitos entenderam não emitir qualquer parecer específico, tendo
disponibilizado o comunicado que emitiu em 9 de Outubro.
Esse comunicado apresenta os esclarecimentos prestados pela actual Direcção de Informação,
pelo jornalista José Rodrigues do Santos e pelo administrador Luís Marques, que transmitiu a
posição do Conselho de Administração. Audição que foi suscitada pela entrevista que o
jornalista deu à revista «Pública».
Nesta reunião dos membros eleitos do Conselho de Redacção com o administrador Luís
Marques, este informou que a administração iniciara «os procedimentos legais» face às
declarações que José Rodrigues dos Santos proferiu.
Os membros eleitos do Conselho de Redacção afirmaram que os factos resultaram de um
processo ocorrido em 2004 e que, «apesar da deliberação e recomendação da Alta Autoridade
para a Comunicação Social, não ficou resolvido entre as partes», o que consideraram
lamentável.
Aduziram que a posição de José Rodrigues dos Santos «está em linha com a deliberação da
Alta Autoridade para a Comunicação Social e do próprio Código Deontológico dos
Jornalistas». Consideraram também que «as pessoas não podem ser alvo de qualquer tipo de
penalização pelo exercício do direito de liberdade de expressão».
Opinam, porém, que José Rodrigues dos Santos «deveria ter tido algum cuidado» na escolha
das palavras e que os procedimentos do Conselho de Administração «colidem frontalmente
com as atribuições de um Director de Informação», tal como se pronunciou a Alta Autoridade
no ponto 9 da sua deliberação.
6. O Conselho Deontológico apreciou as diferentes posições expendidas, relativas aos factos
que as originaram e relativas aos actuais acontecimentos.
No seu ponto 9, a deliberação da Alta Autoridade para a Comunicação Social suscitou a
questão de saber quem escolhe os correspondentes da RTP no estrangeiro. Reiterou que a
administração gere a empresa e a direcção de Informação dirige a informação.
Afirmou que «a designação de um jornalista para efectuar tarefas jornalísticas é uma atitude
eminentemente de direcção de informação, de política editorial. Não é uma função de
administração».
Logo, a decisão tomada em 2004 pela administração é invasiva das competências da direcção
de Informação. Constata-se, de resto, que o actual regulamento mantém os pressupostos que
então suscitaram o diferendo. Estipula que, caso haja circunstâncias no plano de gestão de
recursos que desaconselhem a nomeação, o Conselho de Administração não aprovará a
proposta.
A circunstância é, porém, um conceito vago, difuso e conjuntural para que sirva de razão
bastante para determinar um veto. A alusão ao plano de gestão de recursos, também difuso,
pode remeter para a explicação dada pelo Conselho de Administração à Alta Autoridade,
relativa à nomeação da quarta classificada do concurso de Madrid.
Sustentava a administração que os correspondentes podem desempenhar funções de
representação institucional que ultrapassam as funções meramente jornalísticas.
Ora, este entendimento, que também a Alta Autoridade rebateu em 2004, é de todo
incompatível com o estatuto ético/deontológico dos jornalistas. Um jornalista faz trabalho
jornalístico. Não exerce funções de outro âmbito. Daí que seja abusiva qualquer nomeação de
jornalistas que seja fundada em critérios não-jornalísticos.
No seu ponto 10, o Código Deontológico dos jornalistas portugueses estabelece que o
jornalista «deve recusar funções, tarefas e benefícios susceptíveis de comprometer o seu
estatuto de independência e a sua integridade profissional». Mas também «não deve valer-se
da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesse».
Em resposta às questões suscitadas por José Rodrigues dos Santos, o Conselho Deontológico
exprime as seguintes posições:
— Qualquer jornalista tem o dever ético de denunciar pressões e interferências que sobre ele
se exerçam por parte de entidades e organizações não jornalísticas e que possam afectar o seu
desempenho profissional e cercear a liberdade de informação e a sua independência. É sua
obrigação divulgar essas ofensas.
— No caso em apreço, e como o fez José Rodrigues dos Santos, a denúncia da interferência
da administração na nomeação da correspondente em Madrid, com invasão da competência da
direcção de Informação e com justificação extra-jornalística, constituiu um dever ético e
deontológico.
— A escolha de jornalistas (necessariamente para o exercício de funções jornalísticas) devem
incumbir à direcção editorial e não à administração. O direito de participação dos jornalistas,
consagrado na lei, também recomenda que os seus representantes, designadamente o
Conselho de Redacção, sejam chamados a pronunciar-se.
— A instauração de procedimentos disciplinares tem sempre em vista atingir os visados e,
simultaneamente, exercer coerção sobre os restantes jornalistas. Através do procedimento
contra um visado, intenta-se assegurar o seu isolamento e garantir que actos idênticos de
denúncia não se repitam e frutifiquem.
— A instauração de procedimentos disciplinares a jornalistas que denunciem interferências na
área editorial ou que invoquem a cláusula de consciência visa limitar o direito de participação
e de organização dos jornalistas e, dessa forma, limitar os seus direitos, liberdades e garantias
constitucionais.
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas considera o procedimento disciplinar
instaurado a José Rodrigues dos Santos, qualquer que seja a matéria agora deduzida para o
fundamentar, como um acto destituído de sentido e lesivo dos princípios éticos e
deontológicos da profissão.
Lisboa, 21 de Novembro de 2007
Pelo Conselho Deontológico
Do Sindicato dos Jornalistas
Orlando César
(Presidente)
Votação do parecer
O relatório de Orlando César mereceu a aprovação de Otília Leitão, José Pimenta França e de
António Melo e a seguinte declaração de voto de Pedro Almeida Vieira:
Voto favoravelmente as cinco posições deste parecer, mas discordando bastante da
abordagem seguida. Na verdade, as questões colocadas pelo jornalista José Rodrigues dos
Santos são de óbvia resposta: os jornalistas têm o direito de denunciar pressões e ingerências
externas e a função de uma administração não deve condicionar a liberdade editorial das
Direcções de Informação ou a função dos jornalistas, bem como das suas incompatibilidades.
Esse é um direito e, acrescento, um dever, tanto mais que todos os jornalistas assinam
periodicamente uma declaração de honra em que garantem cumprir «os deveres éticos e
deontológicos da profissão».
Porém, embora coligindo o processo de 2004 (alvo também de uma decisão da então Alta
Autoridade para a Comunicação Social), o presente parecer do Conselho Deontológico
deveria, na minha opinião, focalizar-se apenas no período a partir do processo que, em 2004,
levou à demissão de José Rodrigues dos Santos de director de informação da RTP. E, nesta
linha, saber se os pressupostos se mantinham – isto é, se houve, depois desse período,
situações semelhantes de ingerência do Conselho de Administração nas decisões editoriais,
designadamente na escolha de correspondentes e de coordenadores dos centros regionais.
Ora, pela leitura integral da carta do Conselho de Administração – que julgo não estar
suficientemente sintetizada e de que sou de opinião dever fazer parte de forma integral, em
anexo, do presente parecer por uma questão de transparência (mesmo se foi solicitada
«reserva e privacidade») – existem dados que não podem ser ignorados. E sobretudo que – e
isso é fulcral – passou a existir, através de um regulamento, uma explicitação das
competências nos concursos internos da RTP, tendo ficado claro o papel das três partes em
causa: Conselho de Administração, Direcção de Recursos Humanos e Direcção de
Informação. Significa que o Conselho de Administração assumiu que errou no processo que
levou à escolha, em 2004, da correspondente em Madrid, mesmo se eventualmente se possam
aceitar, ou não, as razões por si aduzidas e referidas na carta enviada ao Conselho
Deontológico. Com este novo regulamento, este Conselho Deontológico não tem
conhecimento da existência de qualquer interferência nas decisões editoriais por parte do
Conselho de Administração da RTP, o que deveria ser mais destacado no parecer. E isso é
também fundamental.
Sobre a instauração do processo disciplinar intentado contra o jornalista José Rodrigues dos
Santos por parte do Conselho de Administração considero que foi uma tomada de posição
desproporcionada e que visa ilegitimamente uma pressão sobre os jornalistas. Mais ainda por
aduzir questões que, acredita-se, não teriam sido usadas se o referido jornalista não tivesse
produzido as declarações ao jornal Público. Mesmo se o Conselho de Administração da RTP
considerasse extemporâneas aquelas declarações, não poderia depois «vingar-se» e, com isso,
condicionar o direito de opinião e de denúncia de um jornalista, ainda mais quando foi feito,
mesmo se eventualmente de modo extemporâneo, com base em factos passados – e este é,
para mim, um ponto sagrado, porque tem implicações presentes e futuras.
Fonte: Sindicato dos Jornalistas